Finalmente, entreguei ontem o meu trabalho, para que possa ser avaliado pelo professor Luís Carlos Martins Alves Júnior, que ministrou o curso O Positivismo Jurídico e a Jurisprudência, para qualificação de magistrados do Piauí. O mestre é procurador da Fazenda Nacional, junto ao Supremo Tribunal Federal, é lente de alto gabarito de universidade do Distrito Federal, e é meu conterrâneo de Campo Maior, filho de um amigo meu.
Cada juiz deveria ter como base para esse trabalho a sua mais difícil decisão judicial. Entre outras sentenças em causas complexas, escolhi uma em que o impetrante do mandado de segurança fora demitido de seu cargo de motorista oficial do município porque supostamente teria se apropriado indevidamente da importância de dez reais. Segundo ele, na petição inicial, viajou a Teresina, conduzindo a ambulância municipal e quatro pacientes, portando a verba de sessenta reais, fornecida pela Secretaria de Saúde.
Logo na consulta do primeiro paciente, gastou cinquenta reais. Diante dessa situação, comprou um cartão telefônico para pedir instrução a seu chefe, sobre o que deveria fazer. À tarde, com fome, gastou a bagatela restante. Alegou que não recebeu diárias e nem suprimento de fundos para pagamentos de pequenas despesas.
Em suas informações, o prefeito alegou que ele se apropriara indevidamente dos dez reais, e que por essa razão fora demitido, através de processo administrativo, em que lhe fora dado o direito à ampla defesa, e em que fora observado o princípio do contraditório, mas que ele, embora intimado, se mantivera inerte. Nada disse sobre os fatos alegados pelo impetrante e muito menos os negou. Não juntou o tal processo administrativo. Ora, ao longo de meus mais de doze anos de magistrado já vi grandes ignomínias, e já vi, algumas vezes, o gestor municipal, por questiúnculas pessoais e picuinhas políticas, querer massacrar humilde barnabé municipal, que, não raras vezes, só tem por si a razão e o di reito.
Entendi que não cabia na cabeça de ninguém, detentor de um mínimo de raciocínio, que um servidor público, tendo recebido apenas sessenta reais, fosse ter a insanidade de fazer um alcance de dez reais, pois isso daria logo na vista da pessoa a quem prestaria conta, quando retornasse da viagem, pelo imediatismo e visibilidade do fato. Também seria rematada loucura que ele fosse arriscar o seu emprego por causa da ínfima quantia de dez reais. Seria um completo bocó, um consumado beócio.
O lógico é que ele pretendia que a administração arcasse com essa despesa, como seria o correto, já que o gasto ocorrera em virtude da viagem, ou pelo menos, na pior hipótese, que esse “astronômico” gasto fosse descontado da diária que o município lhe devia, posto que não lhe pagou diária e nem suprimento de fundos para pequenas despesas. Portanto, tudo bem equacionado e sopesado, o município é que lhe devia, e não ele à unidade administrativa.
Afirmei, sem dúvida com certa dose de ironia, que nem o célebre sensor romano Catão estaria à altura da exação administrativa de Cocal de Telha; que nem mesmo o rigorismo do formidável e legendário legislador Dracon equiparar-se-ia ao fundamentalismo, quase diria xiita, da austeridade da referida administração. Terminei por acrescentar que esse rigor atingira o paroxismo, pois superara a famosa Lei de Talião, da vida por vida, dente por dente, olho por olho, uma vez que o emprego, mesmo de um barnabé municipal, excedia incomensuravelmente em importância a bagatela de dez reais. Não houvera a menor proporcionalidade entre a aplicação da pena e a falta cometida, que a meu ver sequer existira, pelas r azões que explanei acima.
Considerei que, talvez, a exação do gestor do município de Cocal de Telha só encontrasse paralelo no apego formalista dos fariseus à lei mosaica. Os fariseus se celebrizaram pela ostentação exagerada de suas pretensas virtudes, pois se compraziam na aparência e nas exterioridades, e não na essência espiritual, pelo que mereceram umas boas sovas e vergastadas verbais de Cristo, que deles disse serem semelhantes a sepulcros, caiados por fora, mas podres por dentro.
Da mulher de César se disse não bastar ser virtuosa, mas também que deveria aparentar sê-lo. Da administração impetrada, disse esperar, sinceramente, o contrário: esperava que não apenas aparentasse, mas que, de fato, fosse impoluta, como quisera deixar transparecer ao demitir o seu servidor, em consequência do suposto desfalque de dez reais. Diante dos mensaleiros, valeriodutos, sanguessugas e outros ralos e buracos negros em que o dinheiro público se esvaía, asseverei que estava certo de que essa demissão por causa do pretenso desvio de dez reais, diante das circunstâncias em que teria ocorrido, não passava de uma descomunal ironia ou de um formidável e desconcertante blefe.
Invocando princípios do Direito Penal, aduzi que poderia falar em estado de necessidade, quando o impetrante teve que comprar o cartão para fazer o telefonema, no próprio interesse do serviço público, em decorrência da falta de suprimento para pagamento de pequenas e eventuais despesas, e que poderia falar em estado famélico, quando o impetrante precisou saciar sua fome, já que não lhe foi paga a sua diária, como igualmente poderia invocar o princípio da insignificância ou da bagatela, ante a “desmesurada” importância de dez reais.
Em suma, além de usar outros argumentos, fundamentei minha decisão, em seara do Direito Administrativo, com princípios do Direito Penal, e mandei que o humilde servidor fosse reintegrado em seu cargo.