Expedição a Batalha

14 de novembro de 2018
Autor: Elmar Carvalho

Na sexta-feira, na caminhada da Raul Lopes, o magistrado inativo Raimundo de Sousa Lima anunciou que no sábado iria a Batalha, sua terra natal, embora desde os dez anos tenha passado a morar na cidade de Piracuruca, com a finalidade de rever o seu pago natal, onde morara em sua infância e meninice. Perguntei-lhe a que horas sairia, tendo ele me respondido que às quatro. Perguntou-me se eu desejava ir. Incontinenti, sem vacilações, disse que sim. Às quatro horas, na forma combinada, ele me pegou no condomínio onde moro, e seguimos viagem, em companhia do médico Andrey Lima, seu filho, que já conheço de outras viagens e conversas.

Antes das oito horas, entramos na cidade de Batalha, onde já nos esperava o Luís Basílio, que nos guiaria. O início do local de nosso destino fica a uns doze quilômetros da zona urbana, nas proximidades da estrada para Piracuruca. Em certo ponto deixamos a estrada asfaltada, e pegamos uma vicinal bem rústica, que apenas em alguns trechos parecia ter sido beneficiada com a colocação de tênue camada de piçarra, mas que, apesar disso, não tinha as armadilhas de atoleiros, ao menos nesta época de seca acentuada.

Até chegarmos ao ponto final de nosso trajeto, passamos por diferentes paisagens ou mesmo pequenos e diversificados ecossistemas, se assim me posso exprimir. O Luís, espontaneamente ou indagado por nós, ia indicando essas diferenças, com as classificações e denominações regionais. Algumas eu identifiquei, sem a sua ajuda de expert, pela minha vivência ou pelo meu escasso conhecimento livresco. O certo é que num percurso de poucos quilômetros, vimos cerrado ou chapada, caatinga ou sertão, este em tudo semelhante ao que é visto nas fotografias do cangaceiro Lampião.

Em determinado ponto, passamos por uma floresta de árvores de grande porte e de vegetação mais fechada. Perto desta, havia uma outra, em que as árvores eram ainda de mais avantajada dimensão e de folhagens mais densas, de modo que, na minha ótica de leigo, me pareceu resquício ou vestígio de uma possível Mata Atlântica, se é que não estou sendo exagerado ou muito imaginativo em minha suposição.

Vimos paisagens planas, povoadas de inúmeras carnaubeiras, quase um perfeito tabuleiro, em que se viam até as corcovas de cupins, como nos descampados de Campo Maior, mas também encontramos morros e serrotes, com vales e abismos, e os socavões de suas encostas. Apontando para um desses brocotós, que muitos diriam cafundó ou sertões dos confins, o Luís disse que nele ainda existiam animais ariscos, como onças, caititus, mocós e cutias.

Adiante, numa de nossas paradas, soubemos que uma dessas onças, parece que uma suçuarana, andava devorando alguns bodes de fazendas da vizinhança. O morador nos explicou que a fera retirava o couro, para, creio, melhor comer a carne. Em face dessa notícia, o Luís Basílio e o Raimundo Lima recordaram que um velho morador da região, conhecido como Manteiga, deficiente de um dos braços, enfrentou um desses jaguares, sem uso de arma de fogo, e conseguiu vencê-lo.

Manteiga fora a uma caçada com seu cachorro, muito eficiente em seu mister. Perto da encruzilhada, o cão começou a acuar algum animal, perto de uma arredondada moita de cocotinha. O caçador foi verificar o que acontecia, quando, de súbito, uma onça, com a velocidade de um raio, deu um salto para atingi-lo. Manteiga tentou esquivar-se, e conseguiu furar o bicho com uma faca do tipo peixeira. Embora ferida, a onça, em seu bote feroz, conseguiu dar-lhe um forte golpe, que lhe fez soltar a faca. Veio para cima do caçador, que fora cair a uma certa distância.

O cão, que era valente e veloz, partiu em defesa de seu dono, e conseguiu morder a garganta do feroz adversário, que veio a morrer, o que comprova a lealdade e brio desse cachorro, cujo nome era Leão. Com efeito, esse mastim, de cor vermelha, muito grande e forte, fazia jus a seu aristocrático nome, posto que era um verdadeiro leão. E Manteiga provou que também era muito destemido, robusto e lutador, e, portanto, não era nenhuma “manteiga derretida”.

O caçador foi buscar um burro para levar a fera morta, como um troféu e para lhe tirar o couro, que tinha muito valor comercial. Cobriu o rosto do muar com um saco de estopa, pois é fato sabido que essa alimária tem muito medo de onça. Contudo, mais adiante, Manteiga resolveu retirar a “careta” do burro. Este, então, olhando para os lados viu a carcaça da onça, assombrou-se e disparou mato adentro, em “desabalada, alada carreira quase voo”, derrubando a carga que conduzia. Só reapareceu, ainda desconfiado, sete dias depois. Embora esse relato pareça estória de caçador, Luís Basílio, como no poema de Gonçalves Dias, garante ser a pura expressão da verdade: “Meninos, eu vi!”.

No percurso dessa viagem saudosista, que por isso mesmo era também uma viagem no tempo, visitamos o chamado olho-d’água de fora. Ora, presumi, se havia o olho-d’água de fora, me era lícito supor que haveria o de dentro; mas não havia, pelo menos não com esse nome. Mas existia um outro, com outro nome, sobre o qual mais adiante falarei.

O Raimundo nos contou que em sua meninice, não sei se também de peraltice, passava perto do dito olho-d’água de fora, em demanda de uma escola, cuja lembrança, com as devidas elaborações imaginativas e fictícias, aproveitou na fábula do Zé Trunfinha, contida no seu livro A menina do Bico de Ouro; a menina do bico de ouro, de nome Beatrice, dita Titice, por sua vez foi inspirada numa neta do Raimundo, filha do doutor Andrey, de inteligência tão admirável quanto precoce.

Olhamos os seus dois principais minadouros ou vertentes, no entorno dos quais se estende uma várzea, com imponentes e belos buritizeiros e graciosas e elegantes plantas aquáticas, muitas das quais trepadeiras, que se encarapitaram nos grossos troncos dessa palmeira. Vimos alguns cachos de buritis. Esse fruto, com as escamas de sua casca cor de bronze, um bronze avermelhado, parece uma escultura minimalista de um esmerado renascentista; de sua popa são produzidos um doce e um suco deliciosos.

Nesse brejo paradisíaco e quase intocado, esquecido nos confins desse quase ermo, em que se ouvem apenas as notas musicais de cigarras e aves canoras, estavam um jumento e uma mulher a recolher água, que só não me fizeram recordar a passagem bíblica da samaritana, com o seu cântaro, à beira de um poço, porque as vasilhas onde a rurícola colocava a água eram de plástico.

Havia um leito de areia, por onde nas grandes chuvas se forma um riacho. Agora, era apenas um rio seco, um rio de areia, um rio exaurido. O Luís nos relatou que outrora os olhos-d’água eram mais potentes, vertiam mais água. Todavia, agora, eram apenas aquele fiapo de líquido, que mal escorria. Talvez vários fatores tenham concorrido para esse esgotamento: seca prolongada, assoreamento dos minadouros, desmatamentos no entorno, perfuração de poços tubulares…

Dando continuidade ao roteiro de nosso périplo saudosista, sentimental e turístico, fomos à morada do senhor Domingos Antônio da Silva, cujo apelido carinhoso e familiar é Jogó, que precisei anotar, porque às vezes o pronunciava como Bogó, outras, como Bobó; mas bogó é uma vasilha de couro e bobó, um tipo de alimento. E seu Domingos, o nosso Bogó, é um bom velhinho, que encontramos no quintal da casa, quentando sol perto de uma espécie de cabana. No e-mail, em que me foram enviadas as fotografias que documentam o nosso passeio, dele disse o Andrey, que se consagrou como habilidoso fotógrafo de nossa expedição:

“Pudemos ali, como numa viagem ao tempo, ver homens e mulheres vivendo exatamente da mesma maneira como os seus ancestrais, como o Sr. Jogó, viúvo, com 86 anos e um casal de filhos, que se recusaram a deixá-lo para procurarem vida mais amena, longe daquela terra seca pelo sol quente, que para ali persistirem precisaram superar os desafios diários do sertão! Brava gente!”

Noutro trecho do e-mail, disse Andrey sobre seu pai, que em sua meninice percorreu essa paragem bucólica, ainda hoje imersa em solidão e abandono: “Tal cenário de uma vida simples de criança, mas pura, serviram de alicerce para o desenvolvimento da sanidade mental e capacidade de sonhar dessa figura humana única – Raimundo de Sousa Lima”.

Perto de onde a estrada se trifurcava, o Luís nos contou que, muitos anos atrás, próximo a esse local, ele e um companheiro viram, quando o sol já descambava no horizonte, ao longe, o vulto duma pessoa. Quando chegaram ao ponto em que deveriam encontrar esse caminheiro solitário, não mais o viram. Olharam para todos os lados, mas não o localizaram.

Embora procurassem, sequer viram as suas pegadas. De repente, ouviram um pavoroso assobio, muito forte, fino, sibilante e estridente, que jamais pareceria emitido por um ser humano. Contava-se que nesse local de medo e arrepios apareciam assombrações e almas penadas. Nessa encruzilhada, muitos viajantes incautos se confundiam, e escolhiam o caminho errado, um caminho de perdição e incertezas.

Nos arredores desse místico e mítico local, existiu, muitos anos atrás, um barbatão afamado, arisco, veloz e valente, que nenhum vaqueiro, por melhor que fosse, conseguia pegar. Muitos tinham a certeza de que ele fora enfeitiçado por algum mandingueiro da região. Os nativos não tinham dúvida em afirmar que ele era um touro encabojado, que tinha pacto com o capiroto.

Vi os escombros de uma casa de pedra, centenária. Alguns pedaços de parede da velha tapera ainda podiam ser vistos, mostrando as junções das pedras lavradas. Talvez tenha sido construída no tempo do cativeiro, o que mais concorreria para a formação de estórias fantásticas. Não sei se é considerada como mal-assombrada. Nos seus áureos tempos quiçá parecesse impregnada de eternidade, como a casa avoenga de Manuel Bandeira. Contudo, agora é apenas uma tapera, impregnada da fugacidade das coisas frágeis e perecíveis.

Fomos ao outro manancial, que alguns chamam de olho-d’água do Padre. Tendo ficado curioso sobre essa denominação, que é a mesma de uma fonte nas cercanias de Piracuruca, que outrora abastecia essa antiga e histórica urbe, e que ficava num imóvel que pertencera ao padre Máximo Martins Ferreira (mas que atualmente é propriedade de dona Francisca Vidal de Lima, mãe do nosso expedicionário Raimundo Lima), perguntei sobre quem seria esse vigário.

Me foi informado que o “padre” não era padre e sequer fora seminarista. Deram-lhe essa alcunha afetiva e familiar, porque esse homem era calmo, um tanto introspectivo e calado, meio sisudo, como se fora um carmelengo no momento da votação do conclave para a escolha de novo papa. Seu nome é Francisco Ribeiro de Melo, e ele é primo do bravo Raimundo, comandante de nossa aguerrida força expedicionária, e é o dono da Fazenda Expedição.

O manancial pertence a essa velha fazenda, ponto final de nossa incursão turística e saudosista. Era a fonte principal de um grande e verdejante brejo, cheio de enormes árvores frondosas, de exuberante buritizal, de imensas mangueiras, por entre as quais corria o córrego, por cima de pedras esverdeadas e musgosas, a formar pequenas poças ou piscinas. Da sombra refrescante dessas árvores, víamos a encosta ensolarada de um morro, ornada de grandes pedras, que o capricho da natureza ali colocou, para formar uma espécie de Éden, como se fora um paisagismo de Burle Marx.

Quando eu escalava essas pedras e nelas me equilibrava com invulgar talento, uma manga me atingiu o alto da cabeça. Senti o impacto e a dor, que não foi tanta assim e nem me provocou hematoma, graças ao fato de que não era grande, mas um tipo de manguita, que na localidade é conhecida como manga do olho-d’aguinha. Ao olhar para uma jaqueira que havia perto, me consolei, porque fora apenas uma fruta pequena que me acertara, e não uma enorme, caraquenta e pesada jaca, que bem me poderia ter levado a nocaute.

Garantiu-me o jovem Andrey, como se fora uma recompensa ou prêmio, que uma manga, assim como os raios, não cai mais de uma vez na mesma cabeça; e não poderia cair, porquanto já estava no chão. Mesmo assim, como ato de vingança, a comi. E devo dizer que foi a mais deliciosa manga que jamais degustei em toda a minha vida.

A seguir fizemos a viagem de regresso, sem outros incidentes dignos de nota, ao menos no entendimento deste escrivão da armada expedicionária ao pago natal de Raimundo de Sousa Lima, figura ímpar com bem asseverou seu filho.

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