Amigo é coisa para se guardar / No lado esquerdo do peito
Milton NascimentoQuero desejar, antes do fim, / Pra mim e os meus amigos, / Muito amor e tudo mais; / Que fiquem sempre jovens / E tenham as mãos limpas / E aprendam o delírio com coisas reais.
BelchiorJovens tardes de domingo / Tantas alegrias / Velhos tempos / Belos dias
Roberto CarlosJá não tenho epitáfios / para tantas lápides / em meu peito.
Elmar Carvalhorecordações de fantasmas / que já nos abandonaram / de amigos mortos / que nos acompanham / cada vez mais vivos
Elmar Carvalho
No começo de 1975 meu pai (Miguel Arcângelo de Deus Carvalho) passou a morar em Parnaíba, quando foi chefiar a agência local da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, e em junho do mesmo ano o restante da família passou a residir na bela Princesa do Igaraçu, que também poderia ser chamada de “rainha do litoral”. Em 15 de setembro fui assumir emprego nos Correios em Teresina, mas no começo de 1977 retornei a Parnaíba, inclusive para iniciar meu curso de Administração de Empresas, no Campus Ministro Reis Velloso da Universidade Federal do Piauí.
Foi ainda em 1977 ou no ano seguinte, quando passei a ser colaborador do jornal Inovação* (fundado por Reginaldo Costa e Franzé Ribeiro), que iniciei minha feliz e longa amizade, de mais de 40 anos, com Francisco de Canindé Correia (02/08/1943 – 24/01/2020, em Parnaíba), que anos mais tarde seria padrinho do meu filho João Miguel. Logo percebi que ele, além de sua inteligência e cultura, era um fazedor de amigos, por causa de sua simpatia e conversa agradável, e talvez e sobretudo por sua humildade e índole acolhedora.
De ilustre estirpe, disso não fazia alarde e nem tinha jactância; antes, tinha sempre uma postura discreta quanto a seus ilustres ancestrais. Constituiu uma bela família, que amava, zelava e da qual foi irrepreensível provedor e cuidador, tendo igualmente recebido, de sua esposa Tânia e de suas filhas, Ivana e Fátima, amor, cuidado, compreensão e carinho, que nunca lhe faltaram. Teve quatro netos, que amava de todo coração, e os levava a passeios; e sei que foi correspondido plenamente nesse seu amor de “avô coruja”. Dos parentes, do meu conhecimento, era mais próximo de seus irmãos Paulo de Moraes Correia (falecido), Maria Aparecida (falecida) e Teresa de Jesus, de seu tio e primo Dr. Lauro Correia e dos filhos deste, Israel e Gardênia.
Graças, em boa parte, a ele e a suas influências e amizades o Inovação, de forma altiva e independente, pôde circular por vários anos, em periodicidade mensal e ininterrupta. Foi a partir dessa época e de nossas reuniões para discutirmos a pauta e as dificuldades financeiras e outras do jornal que lhe pude melhor observar. Pude perceber a sua inteligência emocional, arguta e aguçada, o seu equilíbrio e bom-senso, a sua alta capacidade argumentativa, focada na lógica, na logística e na razão, se é que não incorro em certa redundância.
Levou uma vida digna, embora modesta, pois nunca teve apego ao ter, aos metais. Teve oportunidade de ser professor da Universidade Federal do Piauí, na época em que não havia a exigência de concurso público, mas não o quis, seja por não ter vocação magisterial, seja por não desejar ingressar sem aprovação em certame. Contudo, sempre foi discreto quanto a isso, e nunca se gabou dessa sua conduta, e muito menos criticou quem quer que fosse. Também convidado a integrar a Academia Parnaibana de Letras, em seus momentos iniciais, recusou o honroso convite, sob a alegação de que não era autor de livro, como registrou o poeta Alcenor Candeira Filho, seu amigo e cunhado, em seu Depoimento sobre ele, publicado na internet, acrescentando que lhe era muito fácil publicar uma obra, bastando para isso coligir os “textos que escreveu em jornais” e os “pronunciamentos feitos como secretário de educação e superintendente do SESI”. Portanto, nunca buscou glórias, honrarias e ouropéis, mas tão-somente ser um homem de bem e do bem.
Aliás, nunca praticou o autoelogio, vez que nunca foi narcisista e muito menos ególatra. Ao contrário, sempre cultivou o silêncio em relação a suas inúmeras e altas virtudes, já que a humildade era uma delas, como já disse. Algum afoito poderia me perguntar: “E defeitos, ele não os tinha?” Claro que os tinha, como todos os temos. Mas os dele eram poucos, diminutos, e para mim irrelevantes, tanto que deles não tratarei neste pequeno trabalho.
Era muito atualizado com o que se passava no mundo e em sua aldeia, vale dizer no seu entorno. Assistia, creio, aos principais jornais da televisão e não dispensava a leitura dos impressos. Era sobremaneira antenado com os assuntos da política. Tenho a impressão de que ele tinha uma recôndita vocação para a alta política, para uma política escoimada de vilezas e mesquinharia, que tivesse um pouco de pureza e altruísmo, em que o centro das atenções e do interesse não fosse jamais o seu umbigo. Melhor dizendo, uma política voltada para o coletivo, para o interesse público e social.
Tinha uma argúcia notável para destrinchar os meandros e as estranhas da política brasileira, piauiense e parnaibana. Parecia um profeta, a antever as jogadas das lideranças e principais protagonistas. Era como se ele estivesse diante de um tabuleiro de xadrez, e pudesse prever a movimentação das peças dos jogadores antagonistas. Se errava uma ou outra vez, é porque o cenário político é muito instável, sujeito a constantes e inúmeras mutações.
Entretanto, as explicações que ele dava, as hipóteses que imaginava e as previsões que fazia, eram concebidas através de um raciocínio límpido e lógico, em que ele delineava as possíveis causas e consequências. Contudo, se ele tivesse tido a vontade e as condições de ingressar na política (e não as teve, e acho que sequer as quis), teria sido um estadista, e não mero político de campanário, paroquial e rasteiro, movido por ambição, egoísmo e ganância.
Jamais ele desejaria o poder apenas pelo poder, mas apenas como um instrumento para servir, para prestar um bom e correto serviço público. Entendo que ele provou isso, quando foi o secretário de Educação, por quatro anos, no primeiro governo de José Hamilton Furtado Castelo Branco. Na época ele ainda gozava de boa saúde e muita disposição física, e pôde dedicar o melhor de seu esforço, capacidade administrativa e inteligência para ser, e foi, um excelente gestor, com o imprescindível apoio do prefeito.
Conseguiu construir várias e dignas unidades educacionais, com várias salas de aula, e reformou outras tantas, que não irei, aqui, enumerar. Principalmente, manteve o sistema educacional em ótima atividade, inclusive com o fornecimento de boa alimentação escolar. Honesto em sua vida particular e nos demais cargos que exerceu, a probidade foi sua marca pessoal, uma espécie de legenda que lhe marcou a administração paradigmática.
II
Posso confessar que me tornei uma pessoa melhor através de minha amizade com Canindé Correia, ao longo de mais de quatro décadas, ao lhe seguir os conselhos e os exemplos. Quando lhe pedíamos a opinião a respeito de qualquer assunto, jamais ele adotava um tom professoral ou doutoral. De forma paciente e simples, e sempre em voz baixa e humilde, emitia os seus argumentos, demonstrando qual o melhor caminho a seguir, explicitando os porquês e as consequências da sua e de outras opções, que acaso fossem aventadas.
Isso acontecia tanto em relação a assuntos pessoais ou particulares, como no tocante ao jornal Inovação e a nossa vida profissional ou educacional. De modo que, aos poucos, sem nenhum desejo de sua parte, tornou-se uma espécie de mentor ou orientador de nosso grupo, mas, como já deixei implícito, sem imposição sua.
Por isso, sem misticismo e mitificações, eu o considerava nosso “guru”, não apenas por ser o mais velho e mais experiente, mas pelo seu alto grau de sensatez, equilíbrio e inteligência, mormente na época em que nos ardiam muito forte a impetuosidade e o destemor da juventude. A sua criatividade para resolução de problemas era notável, e sempre tinha um coringa, que aparecia na hora certa. O coringa poderia ser um plano b ou c, ou uma guinada na estratégia até então perseguida.
Amava o bom, o bem e o belo. Amava o bom porque apreciava as coisas boas, as coisas amáveis e desejáveis. Amava o bem porque era um homem bom, e nos induzia, através de seu exemplo e de sua palavra, a que o fôssemos também. E amava o belo porque amava a beleza da arte, da cultura e da paisagem, vista da janela, ou ao longe, na linha do horizonte.
Amava, creio, sobretudo a beleza que existia ou poderia existir no ser humano, a beleza das músicas que apreciava e a magia de uma boa literatura, fosse em prosa ou em versos. Nunca teve o silêncio e as restrições mesquinhas dos invejosos; pelo contrário, aplaudia com ênfase e entusiasmo, e dizia palavras de admiração e estímulo pelo dom e talento alheios; não às escondidas, mas às escâncaras, à luz do sol, em verdadeiro processo de difusão, para que outros tomassem conhecimento.
Com a criatividade, conhecimento e inteligência que tinha, poderia ter escrito notáveis livros, porque sabia redigir com fluência e desenvoltura, com objetividade e clareza. Talvez tenha aprendido a bem escrever através de aulas, mas acredito tenha sido através de longas horas de leituras, e do convívio com seu pai, o professor Benedito Jonas Correia, que tinha impecável redação, e ainda pelas atas burocráticas que redigia, registrando as reuniões da diretoria da FIEPI, que certamente lhe aumentaram essa habilidade. Quando fui pronunciar alguns de meus discursos, fossem de improviso ou por escrito, discuti com ele o que pretendia dizer, e ele me ajudou com muitas sugestões, informações e dados estatísticos, para reforço de meus argumentos.
Entre esses discursos, posso citar o de minha posse na presidência do Diretório Acadêmico “3 de Março” (Campus Ministro Reis Velloso – UFPI) e o que pronunciei, de improviso, no monumental comício com que Chagas Rodrigues retornou à vida pública, em plena Praça da Graça, após o término de sua cassação pelo regime militar, em que estavam presentes Ulisses Guimarães, Miguel Arraes, Almino Afonso e Franco Montoro, entre as mais conhecidas lideranças do MDB nacional. Alguns fizeram referências ao meu pronunciamento, e isso devo, em grande parte, aos dados fornecidos pelo Canindé.
Não fosse a sua humildade e discrição, sem necessidade de holofotes e ostentações, poderia ter elaborado excelentes livros historiográficos, de economia, ensaios sociológicos, memórias, artigos e crônicas. Contudo, preferiu ajudar outros a escrever e a publicar, e a aplaudir e louvar obras alheias. Talento, criatividade e capacidade intelectual para essas empreitadas não lhe faltavam. Era humilde, sim, entretanto tinha o seu amor próprio e a sua altivez e brio, e sabia se insurgir, de forma civilizada, mas firme, contra quem tivesse a ousadia de tentar lhe atingir moralmente ou o menoscabar.
III
Mestre, chamei-o de meu mestre, porque muito aprendi com ele em nossa longa amizade. Até em coisas simples, dele muitas lições recebi. Ainda no início de nossa fraternal convivência, aprendi como se devia degustar uma espumante cerveja e destroçar uma rodada de cordas de caranguejo. Tendo chegado a Parnaíba há pouco tempo, e não tendo a experiência de manejar um crustáceo, observei como ele o fazia.
Além da lição prática, ele, num dia de domingo, pela manhã, nos ensinou que, ao chegarem as cordas, cada pessoa deveria retirar um caranguejo, e, só após o seu completo “desmonte”, pegar um outro. Vi que a lição se destinava a combater o egoísmo daqueles que avidamente só escolhem a melhor parte, ou seja, a suculenta e carnuda patola. Tempos mais tarde presenciei uma pessoa passar uma decepção, porque de forma egoística e ávida retirava da bacia todas as grandes pinças, sem dar chance aos outros, até ser repreendido pelo patrocinador.
Tendo vindo morar em Parnaíba em 1975, como disse, não lhe poderia conhecer a adolescência e muito menos a meninice. Soube, no entanto, que foi hábil no futebol e no basquete. Quando tomou conhecimento, através de um de meus livros, de que eu havia sido um bom goleiro em minha adolescência, me indagou a respeito, e estampou um sorriso maroto, como se não estivesse acreditando muito nessa minha faceta, que ele desconhecia. Era um ardoroso torcedor do Fluminense do Rio de Janeiro, e a partir dos 50 e poucos anos de idade, sempre que possível, não lhe perdia uma partida, pela TV.
Quando o Terminal Rodoviário, que ficava em local na época considerado distante, passou a funcionar, muitas vezes ele me deu carona, quando eu tinha de retornar a Teresina, geralmente no domingo à tarde. Não esquecia o compromisso, e na hora marcada, lá estava ele à porta de meus pais. Essas e outras demonstrações de amizade fizeram com que a minha família, principalmente meu pai e minha mãe, também lhe tivessem amizade e consideração, que nunca sofreram arranhões, ressalvas ou senões.
Até um pouco antes da doença, de que veio a falecer, fiz com ele muitos passeios e viagens. Fomos a Viçosa do Ceará, na Ibiapaba, a Barra Grande, em visita a nosso amigo e “inovador” Jonas Carvalho, e a vários outros povoados. Com ele participei de muitas e sábias libações e degustações, “regadas”, muitas vezes, a uma boa música. Num barzinho, que ainda existe, quase debaixo da ponte, imediatamente antes do então povoado de Morros da Mariana, degustávamos saborosos caranguejos, que chegavam fresquinhos, ainda cobertos pelas belas e grandes folhagens do mangue; o igarapé, por onde os crustáceos chegavam, em pequenas canoas, passava em frente ao boteco, e aumentava a sedução e a beleza da paisagem.
Ele vibrava quando ouvia uma bela música, sobretudo ao vivo. Eram da sua predileção as inesquecíveis serestas da velha guarda, a melhor bossa da bossa nova, as seletas da velha jovem guarda, naquelas tardes de domingo e outras tardes imortais, inclusive as tardes mais azuis de um dia de sol esplêndido ou as enevoadas de um dia chuvoso, e um rítmico e legítimo samba, do morro ou do asfalto, contanto que fosse bom e de raiz. Era figura quase onipresente no cenário musical parnaibano dos anos 70/80 o seresteiro Osmar Bezerra, com seu vozeirão vibrátil e o indefectível violão, que nos fazia vibrar as cordas todas do coração.
Nessa época (final dos anos 1970 até o final dos anos 1990) eu tinha decorado um bom repertório de poemas, sobretudo de Neruda, Da Costa e Silva, Bandeira e Camões, e ele apreciava quando eu os dizia, com a ênfase de minha juventude cheia de vitalidade e entusiasmo, inclusive uns dois ou três de minha lavra. Também gostava das declamações dramáticas (e às vezes um tanto espalhafatosas) do boêmio e performático Balula, com a sua bela voz tonitruante, que encenava, quase sempre, como aperitivo, destinado a provocar o suspense, uma espécie de proêmio.
Das inesquecíveis libações desse período participavam, com mais ou menos frequência: Vicente de Paula (Potência), Reginaldo Costa, B. Silva, Zé Hamilton e os poetas Alcenor e Airton Meneses, fora outras presenças mais esporádicas. Canindé se esmerava, então, em sua conversa. Sem dúvida era causeur, e sabia condimentar sua prática, com anedotas, piadas, exemplos e casos pitorescos ou engraçados que puxava do baú de sua memória, em que fora protagonista, coadjuvante ou simples observador. Era bem-humorado e gostava de pessoas bem-humoradas e inteligentes. Fora do grupo do Inovação, tinha amigos bem mais velhos, entre os quais cito o mais que centenário dentista João Batista Teles, com quem praticava, de vez quando, um jogo de baralho.
Canindé adorava um banho de mar. Foram incontáveis as vezes em que fui à praia, em sua companhia, quando ele levava sua esposa Tânia e suas filhas Ivana e Fátima, então pequenas. Mas igualmente apreciava um banho de água doce, fosse de rio, lago, piscina ou bica. Por essa razão, quando a Fátima herdou um pequeno pedaço de terra, na localidade Várzea do Simão, e decidimos construir o Sítio Filomena, em homenagem a minha sogra, na parte que vai da margem da estrada vicinal até a beira do Parnaíba, tratei logo de improvisar uma potente bica.
O amigo Zé Francisco Marques, de cujas interpretações musicais ao violão o mestre tanto gostava, tendo observado o quanto Canindé gostava de tomar banho, deu-lhe o carinhoso epíteto de Aquanindé, fazendo o trocadilho de aqua (água) com o seu segundo prenome. Assim, quando fiz a estrutura definitiva das duchas, dei-lhe o nome de Bicas Aquanindé, em homenagem ao saudoso amigo Francisco de Canindé Correia, que fiz registrar em placa metálica, que ele inaugurou. E nessas bicas ele banhou tantas vezes, em agradáveis e inesquecíveis dias de ensolarados domingos, em que tivemos o prazer de sua marcante presença.
Tendo sido seu amigo por anos e anos, não poderia ter deixado de me enriquecer espiritualmente com suas palavras e exemplos. A sua morte foi uma das perdas que mais senti. Quando lhe fecharam o caixão, na hora da saída do cortejo para o seu sepultamento no Cemitério da Igualdade, e vi que não mais o veria nesta atual dimensão, me comovi de verdade, e o pranteei em meu íntimo.
Por isso mesmo, neste sábado, na reunião ordinária da Academia Piauiense de Letras, ao propor voto de pesar por seu falecimento, aprovado por unanimidade, enumerei, em síntese, as suas principais virtudes, e disse que Canindé Correia não foi apenas uma pessoa importante, mas foi, sobretudo, um homem bom, com quem tive a honra e o privilégio de construir e aperfeiçoar uma amizade por mais de quarenta anos.
Agradeço a Deus a graça de tê-lo conhecido e de lhe ter merecido a amizade, a que procurei corresponder, embora com as minhas involuntárias falhas, e por ter usufruído de suas benfazejas, quão agradáveis companhia e conversa.
Teresina, 5 de fevereiro de 2020.
*Para maiores informações sobre o jornal Inovação e sobre a literatura parnaibana, consultar meu livro Aspectos da Literatura Parnaibana e meu Depoimento sobre esse jornal, publicado na internet.